domingo, 10 de março de 2024

Os filmes do Oscar: OPPENHEIMER – 13 indicações

  Por Ricky Nobre

Christopher Nolan nunca foi conhecido pela sutileza em suas criações como cineasta. Porém, sempre nutriu certa fascinação por protagonistas problemáticos, com ética duvidosa ou, pelo menos, conflitante, como podemos ver em Amnésia, Insônia ou mesmo Batman. O Oppenheimer de Nolan é seu estudo mais aprofundado desse tipo de personagem. Com seu estilo grandiloquente e bombástico, Nolan até ensaia alguma sugestão, em meio a seus tão característicos diálogos expositivos intermináveis. Mas o que mais impressiona aqui é como ele parece ter refinado todas suas características, alvos tanto de louvores quanto de escárnios, em sua forma mais bem lapidada. Se Nolan é obsessivo com método, ordem e complexificação, aqui ele atinge seu nirvana.

 

Por mais que o filme trate sobre o Projeto Manhattan, ele não é sobre a bomba nem sobre seus efeitos no mundo, na guerra e na política, mas sobre seu criador e como tudo isso é visto através dele. No tradicional estilo do diretor que segue linhas de tempo distintas, acompanhamos o início da carreira acadêmica de Oppenheimer e o desenvolvimento da bomba. Paralelamente, Oppenheimer responde em intermináveis sessões de um comité sobre suas acusações de “atividades antiamericanas”, e em ainda outra linha futura, o secretário Strauss enfrenta no Senado uma audiência que, de alguma forma, se relaciona com as demais linhas de tempo. O que é inegável é que nada impedia do filme ter sido concebido e montado em ordem cronológica, mas o que Nolan consegue com sua obsessão em complexificar coisas simples é um fascinante exercício de estilo que toma uma história que poderia ser contada de forma totalmente direta e dá a ela uma forma rebuscada, quase um enigma, que se relaciona com a complexidade do tema, que são os dilemas morais do protagonista e dos cientistas que colaboraram com ele e, mais ainda, com o enigma que era a mente de Oppenheimer.

 

Oppenheimer é mostrado como uma figura atormentada pelo seu legado, mas que, durante sua trajetória, parecia sempre escolher o desafio científico em detrimento de questões humanitárias. O consenso na urgência em desenvolver a bomba atômica antes dos nazistas vai se dissipando entre os cientistas após a rendição da Alemanha, mas Oppenheimer vê motivos para continuar, imaginando que a própria existência da bomba tornaria o mundo mais seguro. Sua consciência, porém, permanece bombardeada pela culpa, mas ele nunca decide por uma ação contrária, desafiadora, e vários personagens apontam que não conseguem entender no que, de fato, ele acredita. Por vezes, parece uma paralisia, outras, apenas covardia. Por fim, temos a sensação de que era um homem que não sabia lidar com o fato de que ele sempre escolhia exploração científica, o desafio, que não sabia arcar com a culpa de suas escolhas egoístas.

 

Nolan ilustra essa mente atormentada de diversas formas, desde apenas a expressão torturada de Cillian Murphy (num trabalho excepcional) pela morte da amante pela qual ele se culpa, ou assistindo a um documentário sobre as mortes no Japão graças à radiação dos bombardeios, até uma sequência surpreendente para o cinema tão “realista” do diretor, onde uma tensa cena de interrogatório é iluminada como se estivesse prestes a entrar em fissão nuclear. Aliás, é nesse espaço confinado do comité que o investiga que temos as cenas mais “simbólicas” do cinema de Nolan, como quando Oppenheimer se sente tão exposto pelas perguntas sobre sua amante que ele se sente nu ali, com ela ao seu colo. 

 

Além disso, belas imagens abstratas representam os processos e fenômenos atômicos narrados pelos cientistas, numa ilustração mais lúdica do que realista, e podemos perceber, então, uma identidade visual que não só tira (pelo menos um pouco) o cinema de Nolan de sua obsessão pelo realismo, mas de fato se utiliza de processos fotográficos analógicos para criar esses dois mundos: o exterior e o dentro da mente de Oppenheimer. Nesse sentido, é verdadeiramente impressionante o quanto a aposta de Nolan nos grandes formatos analógicos, no caso o 70mm e IMAX 70, são capazes de verdadeiramente nos sugar para dentro desse mundo, junto com um sound design extraordinário. Toda a sequência do teste de Trinity é o perfeito exemplo disso.

 

Nolan continua em Oppenheimer com seu cinema que é grande, rebuscado além da conta, barulhento e meio opressivo, mas que aqui está em total harmonia com o tamanho do evento histórico, do dilema ético e do personagem, e é uma celebração de um tipo de cinema que cresce ao ser visto nas grandes salas. Nolan orquestra essa sinfonia gigante, que pega algo simples como um átomo e transforma em uma explosão monumental.

COTAÇÃO:



INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Christopher Nolan        

Ator: Cillian Murphy

Ator coadjuvante: Robert Downey Jr.

Atriz coadjuvante: Emily Blunt

Roteiro adaptado: Christopher Nolan, baseado no livro de Kai Bird e Martin J. Sherwin

Música original: Ludwig Göransson

Fotografia: Hoyte van Hoytema

Montagem: Jennifer Lame

Design de produção: Ruth De Jong e Claire Kaufman

Som: Willie Burton, Richard King, Kevin O’Connell e Gary A. Rizzo

Maquiagem: Luisa Abel

Figurinos: Ellen Mirojnick

 

OPPENHEIMER (EUA, 2023)

Com: Cillian Murphy, Robert Downey Jr., Emily Blunt, Florence Pugh, Matt Damon, Kenneth Branagh, Tom Conti, Tom Jenkins, Matthew Modine, Benny Safdie, Casey Affleck e Rami Malek

sábado, 9 de março de 2024

Os filmes do Oscar: ANATOMIA DE UMA QUEDA – 5 indicações

  Por Ricky Nobre

Hitchcock detestava os “whodunits”, que era o apelido para os filmes de mistério que se resumiam à questão sobre “quem matou”, uma vez que todo o apelo do filme poderia desaparecer caso alguém contasse de antemão quem era o culpado. É bastante irônico que sua obra máxima Psicose seja um whodunit disfarçado, pois o público passa o tempo inteiro pensando que sabe quem é o culpado. Seria muito interessante se Hitchcock pudesse ver hoje Anatomia de Uma Queda, um whodunit que ousa deixar essa pergunta em segundo plano. Esclarecer o que de fato aconteceu ao personagem caído na neve não é do interesse da cineasta Justine Triet, que se concentra em um exercício de controle de narrativas: a da acusada, do promotor, do menino em meio a uma tragédia familiar, e o de sua própria como diretora. 

 

É muito curioso como Triet, na capacidade de roteirista e diretora, articula movimentos aparentemente antagônicos, porém complementares: o roteiro é uma busca pela verdade, enquanto a câmera é um instrumento da dúvida. Por vezes, a câmera apresenta uma possível verdade, ilustrando as teorias, tanto da acusação quanto da defesa. Porém, por outras parece mais eloquente quando Triet decide por sua ausência. Durante a apresentação de um áudio no tribunal, a montagem rapidamente nos transporta no tempo para que possamos ver o casal discutindo, para, subitamente, voltar para o tribunal quando o áudio sugere sons de violência, deixando a nós e a todos na audiência na dúvida sobre o que de fato aconteceu, ficando a palavra da acusada como o único elemento esclarecedor. 

 

Triet instiga nossa dúvida sobre a culpa ou não de Sandra, especialmente quando a câmera se retira em momentos estratégicos, nos deixando apenas com sua palavra, ou quando muda sua postura diante da personagem, como quando ela está treinando um depoimento com seu advogado e, diante de uma determinada pergunta, a câmera passa de uma posição de simples observadora para um close em plongée, numa proximidade desconfortável, como que tentando nos revelar algo para além da capacidade da personagem em mentir ou omitir. Da mesma forma, Triet brinca com esse jogo não apenas de ocultar, mas da câmera mostrar fatos ou versões, deixando momentos como a lembrança do menino no carro com o pai algo a ser ou não digno de confiança. 

 

É muito interessante o papel da música no filme. Quase toda a música apresentada é diegética, seja o hip hop tocado obcessivamente pelo marido, seja a música do menino ao piano. Essas passagens ao piano, que soam com todas as imperfeições de uma criança talentosa, apesar de diegéticas, também funcionam não diegeticamente a partir da forma como a montagem as apresenta e, desta forma, servindo também como pontuamento dramático. A única passagem musical totalmente não diegética é na última cena, onde uma das músicas tocadas anteriormente pelo menino retorna em uma gravação profissional, perfeita, quando o bravo Snoop se junta a Sandra no sofá. Ali, Triet dá o último laço que amarra sua coleção de dúvidas, especialmente sobre um menino, que pode ter ou não descoberto e lembrado de fatos importantes, e sobre uma mãe, que pode ou não ter matado o pai de seu filho. 

 

Desta forma, Triet explora na narrativa fílmica as fragilidades e os dilemas das narrativas do próprio ambiente do tribunal, e estabelece em seu espaço dramático um paralelo com o sistema de justiça, onde o objetivo é provar a culpa, não a inocência. Se a encenação do roteiro busca os fatos e a verdade, a encenação proposta pela câmera e pela montagem estabelece a dúvida razoável. E se ela é suficiente para a justiça, também é para Triet que forja em Anatomia de Uma Queda um filme de tribunal que será referência absoluta no gênero pelas próximas décadas.

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INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Justine Triet

Atriz: Sandra Hüller

Roteiro original: Justine Triet e Arthur Harari

Montagem: Laurent Sénéchal

 

ANATOMIA DE UMA QUEDA (Anatomie d'une Chute, França – 2023)

Com: Sandra Hüller, Swann Arlaud, Milo Machado-Graner, Antoine Reinartz, Jehnny Beth, Anne Rotger, Camille Rutherfor e Messi.

Direção: Justine Triet

Roteiro: Justine Triet e Arthur Harari

Fotografia: Simon Beaufils

Montagem: Laurent Sénéchal

 

 

quarta-feira, 6 de março de 2024

Os filmes do Oscar: POBRES CRIATURAS - 11 indicações

Por Ricky Nobre

O desconforto é uma constante na filmografia de Yorgos Lanthimos. O que muda é a intensidade, que pode fazer você só se ajeitar na cadeira ou sair correndo do cinema. Dito isso, Pobres Criaturas é provavelmente seu filme mais "confortável", ou melhor, aquele cujo desconforto é mais sutil, principalmente para os que embarcarem com facilidade na proposta do filme. Lanthimos leva a sério a expressão "conto de fadas para adultos". Em um magnífico mundo de fantasia meio gótico, meio steampunk, acompanhamos o crescimento de Bella, criada pelo frankensteiniano Dr Baxter ao reviver o corpo de uma jovem suicida implantando nela o cérebro de sua bebê morta no ventre. O cérebro desenvolve rápido no corpo da adulta e vemos Bella passar por todas as fases do amadurecimento, descobrir o mundo, o sexo, o amor, o mal e seu lugar como mulher no mundo. 

 

É fascinante como vemos Bella partir de uma condição onde mal consegue pronunciar palavras básicas e ir seguindo num crescente de aprendizado de pensamento lógico que, em muitas ocasiões, colide com as etiquetas e os moralismos sociais. Nesse quesito, sua descoberta do sexo é o principal motor desta jornada, e é também, durante todo o filme, a principal fonte de potência e liberdade para ela mas, também, o principal motivo pelo qual o mundo exterior tenta detê-la. E é justamente a colisão desse ímpeto de liberdade com essa força castradora da sociedade que inspiram e moldam o pensamento de Bella sobre o mundo. Pensamento este que vai bem além do sexo (apesar de ser, em grande parte de sua essência, sobre ele) como quando Bella descobre, horrorizada, a capacidade humana para o mal.

 

Em sua jornada feminina, uma de suas principais batalhas é pelo direito de ser dona de si mesma. Cercada de homens que acreditam terem direitos sobre ela pelos mais variados motivos, é particularmente intrigante, como também irônico, que Bella mais aprenda a desenvolver isso durante o período em que realiza trabalho sexual, muito a partir da relação que ela tem com outras mulheres e como ela lida com as contradições da variedade de experiências com os homens que a procuram.

 

O cinema de Yorgos Lanthimos sempre se diferenciou dos de outros cineastas que buscam o choque, o desconforto e o bizarro pela dimensão verdadeiramente humana de seus personagens e seus temas. O que há de mais fascinante e irresistível em Pobres Criaturas é o brilho no olhar de Bella, a vida nele e por ele. Um maravilhamento por tudo, pelo sexo, pela arte, pelas pessoas, pelas cidades, tão contagiante e intenso que sentimos profundamente sua queda quando ela se desilude com o mundo. Bella sente e pensa intensamente e constantemente transforma seus sentimentos em ideias. E Lanthimos cria belissimamente esse mundo para que nós possamos nos maravilhar com ela. O design de produção e os figurinos sublimes nos mantém constantemente imersos nesse mundo que o diretor faz questão de manter na esfera da fantasia, do absurdo e do belo. A lente grande angular, sempre uma favorita de Lanthimos, parece sempre dar absoluto protagonismo à suntuosidade e à estranheza dos entornos e como os personagens, Bella em específico, estão inseridos neles, ainda que o uso de lente 10mm (conhecida como “olho de peixe”) pareça buscar apenas incômodo sensorial.

A brilhante trilha musical de Jerskin Fendrix estabelece um perfeito paralelo com a protagonista, onde a música começa com poucas notas e instrumentos, e o uso de dissonância e atonalidade, e vai lentamente se tornando mais complexa e estruturada, até culminar no final, onde um tema completo de estilo clássico (com ecos de Jerry Goldsmith) marca a completa realização da personagem, ainda que permaneça com sua instrumentação muito particular, pois Bella é única.

 

Não é possível ignorar não apenas a magnífica interpretação de Emma Stone, mas também sua absoluta entrega à personagem e como ela se expressa na visão de Lanthimos. A evolução de Bella desde às primeiras cenas até a conclusão possui uma coesão e uma expressividade em seu simbolismo do “tornar-se mulher”, como descrito por Beauvoir, mas que, em certos momentos, pode dar a impressão de alguns “saltos”, porém são perfeitamente consistentes na forma como Bella articula seus sentimentos com sua percepção de mundo. Nisso, a entrega de Stone às numerosas cenas de sexo e nudez cristaliza a relação de Bella com esse senso de intensidade máxima com a qual ela percebe e experimenta tudo. Inclusive, Lanthimos faz questão que essas cenas tenham um mínimo de lençóis ou roupas cobrindo os atos, porque é com esse despudoramento, ao mesmo tempo inocente e vulcânico, que Bella exerce sua sexualidade e toda a sua experimentação da vida.

 

Por fim, Pobres Criaturas não é tanto sobre o desconforto que o filme causa ao espectador (levando em conta o conjunto da obra de Lanthimos), mas sobre o desconforto que Bella causa ao seu entorno em sua jornada de descoberta da vida e de si. O desconforto gerado por sua determinação em ser livre. Lanthimos realiza um filme que, mesmo em sua complexidade e peso de seus temas, possui uma leveza que, no fundo, é a leveza contagiante de Bella que, em um deslumbrante mundo de fantasia, nos presenteia com sua ousadia, beleza, humor e, sobretudo, coragem.

COTAÇÃO:


 


INDICAÇÕES AO OSCAR:

Melhor filme

Direção: Yorgos Lanthimos

Atriz: Emma Stone

Ator coadjuvante: Mark Ruffalo

Roteiro adaptado: Tony McNamara, baseado no livro de Alasdair Gray

Música original: Jerskin Fendrix

Design de produção: Shona Heath, James Price e Zsuzsa Mihalek

Fotografia: Robbie Ryan

Montagem: Yorgos Mavropsaridis   

Maquiagem: Nadia Stacey, Mark Coulier e Josh Weston

Figurinos: Holly Waddington


POBRES CRIATURAS (Poor Things, EUA – 2023)

Com: Emma Stone, Willem Dafoe, Vicki Pepperdine, Ramy Youssef, Mark Ruffalo, Hanna Schygulla, Kathryn Hunter, Suzy Bemba, Margaret Qualley e Christopher Abbott